por Catherine Schuon

Antes de mais nada, devo avisar ao leitor que, quando me refiro a Frithjof Schuon, sempre digo “o Cheikh”, pois nunca me dirigi a ele senão por este título; eu usava seu primeiro nome apenas na presença dos membros de minha família, e mesmo assim evitava fazê-lo, já que me parecia totalmente inadequado. Durante os cinquenta anos de nossa vida em comum, jamais deixei de sentir em sua presença uma admiração reverente e, na medida em que sua grandeza espiritual e moral me eram desvendadas através da leitura de seus livros e das qualidades que ele manifestava, uma veneração cada vez mais profunda.

É verdade que, na intimidade, eu costumava acrescentar à palavra Cheikh o sufixo afetuoso “-li”, usado no dialeto suíço-alemão; realmente, o Cheikh suscitava a ternura por sua inocência e por seu lado às vezes quase benevolente demais. Com uma pureza de coração desconcertante, ele acreditava no que lhe diziam e preferia ignorar o fato de que pessoas com aspirações espirituais podiam ser hipócritas ou mesmo mentirosas. A propósito da santa ingenuidade, ele sempre citava a história de Santo Tomás de Aquino, que foi chamado por um monge à janela para ver um boi voando; quando o monge caçoou do santo por ter acreditado nele, Santo Tomás replicou: “Prefiro acreditar que um boi voa a crer que um monge mente”. O Cheikh reagiria do mesmo modo.

Eu o encontrei pela primeira vez na primavera de 1947. Ele então morava em um pequeno apartamento de um quarto em Lausanne (Suíça), em uma alameda tranquila e sem trânsito, cercada de um lado por uma linda propriedade cultivada com cedros e árvores floridas e do outro lado por uma fileira de edificações cujas entradas eram enfeitadas por pequenos jardins. Eu estava acompanhada por um de seus representantes, que havia me emprestado os livros mais importantes de René Guenon e que, ao perceber meu entusiasmo e a seriedade de minhas intenções, consentiu falar-me de Frithjof Schuon, de sua função como mestre espiritual e de sua confraria.

Tocamos a campainha no quarto andar e o Cheikh, vestido com um cafetã marrom, abriu a porta. Meu coração, que batia muito forte, acalmou-se imediatamente à visão daquele homem cuja enorme dignidade fazia par com uma afabilidade que deixava todos imediatamente à vontade, e cuja voz era impressionantemente suave e clara. Ele fez um sinal para que eu me sentasse em uma almofada; ele mesmo sentou-se em um divã baixo coberto com uma manta turca, e o visitante sentou-se no chão ao seu lado. Ali estava ele, tal qual uma montanha de força e serenidade, suas belas mãos pousadas nos joelhos, seus olhos semi-cerrados. Atrás dele, na parede, estava pendurado um lindo tecido da Indonésia. A sala era dividida em dois por uma cortina dourada, atrás da qual podia-se adivinhar que ficava o espaço reservado às orações; a parte maior, que dava para uma pequena varanda, estava mobiliada com o divã e com um baú gótico, sobre o qual assentava-se uma estátua romanesca da Virgem Maria em majestade. Toda a sala estava coberta por tapetes afegãos. Ao lado do divã, perto da janela, uma árvore de ficus e duas azaleias acrescentavam uma nota acolhedora à beleza sóbria e apaziguadora que reinava naquele local.

Após um momento de silêncio, o Cheikh perguntou-me quais eram as razões que haviam me atraído para a vida espiritual e se eu tinha algum problema particular. Claro que eu tinha problemas, mas, pela simples presença deste Mestre e por algumas de suas palavras, era como que se eles tivessem evaporado. Ele então perguntou-me: “Você sabe fazer café? Poderia nos preparar uma xícara?” Encantada por poder ser útil, fui até a cozinha. Uma escrivaninha antiga estava espremida entre a porta e a pia ao lado da janela; no lado oposto, entre o fogão e o armário, ficava uma mesa com pilhas de livros e pastas em cima e embaixo. Uma porta de vidro dava para a pequena varanda da sala, onde crescia um oleandro (espirradeira) e os vasos aguardavam a floração dos gerânios. Tudo era limpo e muito bem arrumado, por isso foi fácil encontrar o que era preciso para fazer o café. Eu trouxe o bule e duas xícaras em uma bandeja que coloquei na frente do Cheikh, feliz por poder mostrar o meu respeito ajoelhando-me perante ele e servindo-lhe o café. Recusei o mais polidamente possível o seu convite para que eu também bebesse. Ele então virou-se para o meu acompanhante e perguntou, entre outras coisas: “Como vai o seu gato?”. Este discípulo, de fato, possuía um lindo gato persa e contou que gostava de fazer bolhas de sabão para observar o gato tentando pegá-las. O Cheikh disse com um leve sorriso: “Eu me pergunto se você arranjou as bolhas para o gato ou para você mesmo”. Eu não me lembro de nada mais, exceto do fato de que o Cheikh não bebeu todo o seu café e despejou o resto no vaso de ficus. Mais tarde eu soube que isto era um hábito dele, e a planta estava realmente se desenvolvendo bem.

Depois desta entrevista eu voltei para casa com o coração repleto de uma doce alegria. Eu estava esperando um interrogatório severo, mas tudo foi muito simples e natural. O som de sua voz suave continuava a soar em meus ouvidos e eu não podia esquecer seu olhar profundamente misterioso (por muito tempo acreditei que seus olhos eram pretos, embora na realidade fossem cinza-azulados).

Alguns dias depois, do bonde em que eu voltava do trabalho, vi o Cheikh na rua: ele carregava uma sacola cheia de mantimentos e caminhava com um passo enérgico que contrastava com a expressão contemplativa de sua face. Como muitas outras vezes depois, eu fiquei impressionada por esta fascinante combinação de força irresistível e interioridade serena.

Mas eu comecei a perguntar-me algumas questões: como era possível para este homem que, por mais de dez anos, era o líder de uma Tarîqa com numerosos discípulos, viver em um apartamento minúsculo, precisar ele mesmo abrir a porta para seus visitantes, fazer suas próprias compras, cozinhar sua comida e sabe-se lá mais o quê? Também achei que ele não parecia bem. Teria algum problema de saúde? Estaria bem alimentado? As respostas só vieram mais tarde.

Logo depois do meu primeiro encontro com o Cheikh passei a ser convidada, de tempos em tempos, para encontros de oração com outros amigos. Após uma refeição simples – pão de centeio, queijo, frutas e chá – feita em silêncio, o Cheikh falava da doutrina e da vida espiritual, e respondia a questões. Nestas ocasiões eu invariavelmente sentia um poderoso sopro de benção; era quase como se eu pudesse ver raios de luz emanando dele. Ele ficava sentado no seu divã, usando roupas marroquinas, assim como seus discípulos, que ficavam sentados no chão em semicírculo, as mulheres atrás. A vestimenta tradicional, algo sobre o qual o Cheikh insistia, dava dignidade a cada um. Dois lustres marroquinos de cobre finamente cinzelado projetavam delicados padrões rendados no teto e nas paredes e, enquanto realizávamos os ritos, incenso preenchia o ar. Tudo era beleza sagrada e paz, e eu voltava destes encontros como que embriagada com o vinho da verdade.

Um dia, Lucy von Dechend (uma amiga antiga da família Schuon e ela mesma uma discípula), que costumava datilografar os artigos do Cheikh, perguntou-me se eu poderia fazer este trabalho, pois ela precisava ausentar-se por alguns meses, e entregou-me o manuscrito do artigo “Microcosmo e Símbolo”, que apareceria mais tarde no livro L’œil du Coeur (O Olho do Coração). Eu deveria entregar o trabalho uma quarta-feira às seis horas da tarde e então pegar outro artigo, e assim tive o privilégio de ver o Cheikh regularmente. Toda vez ele me perguntava se eu havia entendido tudo; por isso, adquiri o hábito de colocar-me no lugar do leitor, e, se uma passagem parecesse um tanto difícil de compreender, eu a indicava para o Cheikh, que, para meu grande espanto, fazia alguma modificação. Eu realmente me espantava com o fato de um homem tão inteligente escutar uma “iniciante” como eu, mas a humildade estava na base do seu caráter – não poderia ser diferente –, e ele gostava de pedir conselhos aos seus amigos em várias questões. Ele escrevia seus artigos de uma só vez, em alguns dias, e só os revisava depois que estivessem datilografados; então era preciso recopiá-los para que tudo estivesse claro para o editor, embora sua letra e suas correções fossem sempre muito legíveis. Ele não escrevia com a intenção de publicar um livro com um título pré-determinado, mas antes para responder a problemas ou por uma necessidade interior. Quando o número de artigos era suficiente para fazer um livro, ele os colocava em uma certa ordem e então dava um título ao conjunto. A única exceção a esta regra foi Compreender o Islã e talvez também seu primeiro trabalho, Da Unidade Transcendente das Religiões, que contém sua tese principal e, de fato, toda a sua obra em potência.

Ele também preenchia páginas e páginas com pensamentos e reflexões na forma de aforismos sobre os mais diversos tópicos; era o esboço de Perspectivas Espirituais e Fatos Humanos. Certo dia, ele tinha em sua escrivaninha vários pedaços de celofane de diferentes cores, cujos simbolismo e significado explicou-me. Ele me fez olhar a paisagem através dos diferentes pedaços de celofane e perguntou-me qual impressão me causavam; de fato, o amarelo estimulou a alegria, o roxo, a tristeza, o azul é misterioso, o verde, apaziguador, o vermelho, um tanto assustador por sua intensidade etc.

Outro dia, ele conversou comigo sobre astronomia, um assunto que parecia fasciná-lo, pois ele havia feito toda uma série de cálculos de forma a poder-se representar concretamente o espaço estelar. Ele mostrou-me o seu globo terrestre e disse: “Se a Terra tivesse esta dimensão, a Lua teria o tamanho de uma maçã e estaria a uma distância de cerca de oito metros da Terra, e o Sol teria o tamanho de uma casa que se encontrasse em Sauvabelin (uma colina acima de Lausanne). Vênus estaria onde fica a catedral; Júpiter, nove vezes o tamanho da Terra, estaria no meio do lago Léman, e assim por diante. Se o Sol é uma maçã grande, a Terra é uma semente de mostarda e estaria a uma distância de dez metros do Sol. O Sistema Solar não chegaria a ocupar meio quilometro e, ao redor dele, haveria um espaço vazio maior do que a Europa” etc. Ele falou-me sobre a Via Láctea, sobre o Grande Sistema Galáctico… era de causar vertigens. Mas muito mais vertiginoso foi o que ele me disse mais tarde e que desenvolveu em dois de seus livros: “O homem moderno não tem consciência de estar envolvido em um drama titânico em relação ao qual este mundo, aparentemente tão sólido, não é mais do que uma teia de aranha… Ele não vê que este mundo pode ruir ab intra, que a matéria pode refluir ‘para dentro’ por um processo de transmutação, e que todo o espaço pode encolher como um balão do qual foi retirado o ar”.[1] Ou ainda, falando sobre os Atributos Divinos e, em particular, de Al-Akhir (Deus como “O Último”): “Se se quisesse ter uma ideia mais ou menos concreta do advento de Al-Akhir, haveria que poder assistir por antecipação a essa espécie de explosão da matéria, essa espécie de revulsão ou refluxo existencial que marcará o advento de Deus; haveria que poder ouvir de antemão o som da Trombeta – essa irrupção dilacerante do Som primordial – e ver a dissolução e a transmutação do universo sensível”.[2] Eu assistia em pensamento a todo este drama cósmico e me perguntava, maravilhada, de onde ele tirava tudo o que estava me descrevendo. Ele não parecia falar por conhecimento teórico, mas por conhecimento e experiência diretos. Ele me dava a impressão de um homem que, tal qual um anjo, voa através de todas as esferas do universo, até a mais alta, uma impressão que me voltava sempre ao espírito na medida em que eu o encontrava mais vezes e lia suas obras.

Em outra ocasião, ele me mostrou um velho livro que apresentava os costumes de todos os povos do mundo. Ele tinha o maior interesse em tudo que se relacionava com as diferentes raças da humanidade. Ele sabia os nomes de todos os povos da Ásia, de todas as tribos da África e da América, conhecia suas histórias, suas religiões, seus costumes, tinha noções de suas línguas, de suas escrituras; recitava com verve passagens da Ilíada em grego, da Divina Comédia em italiano, cantava canções de ninar africanas ou um canto de guerra sioux; ele tinha aprendido com muita facilidade a língua e a escrita árabe, e apreendeu noções de sânscrito, chinês e japonês, sabendo escrever de cor, com um pincel fino, o primeiro capítulo do Tao Te King. Todo este saber ele adquiriu em sua juventude, para escapar da estreita atmosfera europeia predominante, que para ele era sufocante. Ele também sabia desenhar, com traços de pena fazia o retrato de um chinês, de um árabe, de um hindu ou de um pele-vermelha…

Em compensação, ele não tinha nenhuma memória para coisas que não o interessavam, e deixava as ciências cosmológicas para seu melhor amigo, Titus Burckhardt. Ele desconfiava da astrologia, achando que as pessoas podiam muito facilmente chegar a conclusões erradas e, acima de tudo, não tolerava a feitura de predições. Depois que este assunto surgiu, certo dia, durante um encontro, ele perguntou-me: “qual é o meu signo?”. Eu disse que ele tinha o sol em Gêmeos e o ascendente em Peixes. Ele sorriu ligeiramente e perguntou: “E o que significa isto?”. Eu lhe ofereci o pouco que sabia dessa ciência e ele ficou em silêncio. Ele estava tão desinteressado que no dia seguinte tinha esquecido de tudo.

Cerca de um ano depois de nosso primeiro encontro, ele me perguntou se eu poderia cozinhar para ele uma vez por semana. Eu dava o melhor de mim para preparar refeições saudáveis e completas, às quais ele me convidava sem exceção – um oferecimento que eu não havia previsto. Depois da refeição, ele lia para mim poesias místicas de São João da Cruz e de Santa Teresa do Menino Jesus. Ele amava muito esta santa, dizia que sua grandeza consistia precisamente em sua santa pequenez, e emprestou-me o livro História de uma Alma. Ele estava, nessa época, mergulhado na leitura dos Padres da Igreja e dos místicos cristãos, e foi então que escreveu “Mistérios Crísticos”, um artigo que, como tudo que ele escreveu sobre este assunto, ajudou-me a compreender o Cristianismo em profundidade.

Outro livro que ele me emprestou foi Black Elk Speaks [Alce Negro Fala], a autobiografia ditada de um sábio e homem santo da tribo dos Sioux que, em sua juventude, vivenciou a heróica resistência de seu povo contra os brancos e que, ao mesmo tempo, recebeu visões para ajudar seus próximos espiritual e medicinalmente. Eu não sabia praticamente nada sobre os índios norte-americanos, e este livro abriu-me um mundo totalmente insuspeito. O próprio Cheikh ficara tão impressionado com o livro que sugerira a um de seus discípulos americanos, Joseph Epes Brown, futuro professor de etnologia, viajar ao Oeste para tentar encontrar esse sábio e obter dele maiores informações sobre sua religião. Brown encontrou-o e ficou junto dele durante um ano, no decorrer do qual Black Elk confiou-lhe todo o seu conhecimento sobre os sete ritos essenciais de seu povo; o resultado foi o livro The Sacred Pipe [O Cachimbo Sagrado e uma amizade com Benjamin, o filho de Black Elk, que nos abriria muitas portas durante nossas viagens ao Oeste americano.

* * *

 Quando ficamos noivos, íamos nos fins-de-semana passear no lago Genebra; o Cheikh amava este lago que, com sua superfície calma e a majestade das montanhas ao longe, era como uma extensão de sua própria alma. Ele tinha o hábito de ir toda manhã ao cais de Ouchy para respirar a plenos pulmões a Presença de Deus. Ali, só raramente ele encontrava outros caminhantes que também buscavam a solidão, como por exemplo o rei Afonso XIII da Espanha ou o venerável bei da Tunísia, um maestro famoso na época ou ainda o general Guisan, do exército suíço. Ele saudava-os inclinando a cabeça e eles devolviam o cumprimento. Durante nossos passeios, o Cheikh me falava sobre os diferentes significados da Shahâda (não há deus a não ser o único Deus), dizendo que pode-se substituir a palavra “deus” por toda qualidade positiva: não há beleza que não a Beleza; não há justiça que não a Justiça, assim por diante e, finalmente: não há realidade que não a Realidade. Ele me falava frequentemente da “transparência metafísica dos fenômenos” e era evidente que ele via Deus em tudo e tudo em Deus. Para mim, que até então concebia Deus como estando em um distante mais-além, estas conversas foram como que uma revelação que me permitiram intuir a proximidade da Presença divina.

O respeito que o Cheikh tinha por toda a criação se manifestava nas pequenas coisas. Por exemplo, quando atravessava um prado, ele evitava pisar nas margaridas; ou, se pardais estivessem ciscando na calçada, ele esperava até que levantassem vôo ou desviava seu caminho para não atrapalhar as aves. Ele jamais matava um inseto: quando uma aranha ou uma centopeia apareciam em seu quarto, ele pegava um copo que emborcava sobre o inseto, deslizava um cartão postal sob o copo e jogava o inseto pela janela. Ele amava muito os gatos e não tolerava que fossem perturbados durante seu sono ou em seus estados contemplativos. Quando nosso gato deitava-se na escrivaninha do Cheikh para impedi-lo de escrever – ele parecia ter ciúme da atenção recebida pelo bloco de papel – era realmente um pequeno problema. Ele pedia que eu viesse retirar nosso pequeno felino da cama proibida. Quando nos instalamos em nossa nova casa em Pully, o Cheikh veio me ajudar a plantar as flores no jardim. De repente, ele parou, empalideceu e disse: “Não posso continuar esse trabalho, com a enxada eu cortei uma minhoca ao meio”.

Alguns animais correspondiam a tal amor e respeito. Os cães frequentemente seguiam o Cheikh, abanando suas caudas, ou paravam de latir quando ele passava na frente de uma casa onde os animais estavam de guarda.

Na infância, o pequeno Frithjof tinha o hábito de rezar durante toda a sua caminhada de meia-hora até a escola. Em uma aula de história bíblica, o professor falou sobre a injunção “orai sem cessar”, uma injunção que a criança levou muito a sério. Bem, um dia em que ele caminhava para casa conversando com Deus, um grande cão negro com um olhar maligno atacou-o, derrubou-o no chão e ameaçou morder sua garganta. Então, um lindo pastor alemão apareceu, afugentou a fera negra e acompanhou o garoto até ele chegar em casa.

Muito tempo depois – o Cheikh já era por vários anos o chefe de uma florescente Tariqa – sua mãe, que não possuía a mínima compreensão sobre o próprio filho, começou a criticá-lo amargamente por ele não ter estudado Direito ou Medicina, afirmando que ele era um fracasso na vida etc., quando um gatinho apareceu, pulou no colo do Cheikh e começou a dançar sobre suas patinhas traseiras, olhando para o Cheikh com seus grandes olhos e ronronando alto. A senhora Schuon, que também amava os gatos, ao ver esta manifestação de amor por seu filho parou imediatamente e não ousou continuar com aquelas diatribes no mínimo injustificadas.

(Uma vez, no entanto, a senhora Schuon ficou orgulhosa de seu filho. Depois de um derrame, ela perdeu a capacidade de falar. O Cheikh levou para a mãe sua estátua da Virgem e disse: “Olhe para esta estátua e tente dizer ‘Ave Maria’; se perseverar, será capaz de falar novamente”. E foi isto o que aconteceu: após três dias, ela já podia falar normalmente, e contava para todos que seu filho a curara – embora o Cheikh soubesse muito bem que fora a Virgem quem fizera isto).

No zoológico de Rabat (Marrocos) presenciamos uma cena espantosa. Fazíamos o passeio na companhia de alguns amigos; eu caminhava na frente com as mulheres e o Cheikh seguia a uma certa distância com os homens. Havia uma dúzia de grandes jaulas de leões dispostas em semicírculo ao redor de um grupo de palmeiras. Todos os leões pareciam cochilar, apenas os filhotes estavam provocando suas mães e brincando. Assim que nós, as mulheres, chegamos à quinta ou sexta jaula, os leões subitamente levantaram e rugiram poderosamente. Atônitas, viramo-nos, imaginando qual seria a causa deste súbito alarido: era o momento exato em que o Cheikh havia entrado no semicírculo das jaulas. Os leões quiseram saudá-lo! A impressionante saudação durou alguns segundos e então o silêncio da sesta dos felinos reinou novamente.

Algo análogo ocorreu durante uma visita à ala dos animais do circo Knie, na Suíça. Entramos na tenda onde era mantida meia dúzia de elefantes; eles estavam calmamente balançando suas trombas mas, quando o Cheikh passou perto deles, os quatro elefantes adultos levantaram suas trombas, um após o outro, para saudá-lo!

Quanto aos seres humanos, eles geralmente reagiam em relação ao Cheikh com respeito ou com uma curiosidade respeitosa. Sua dignidade e sua expressão serena só podiam atrair a atenção de certas pessoas. Ele caminhava como se estivesse carregando consigo um objeto sagrado e, de fato, seu tesouro era a perpétua lembrança de Deus. As pessoas perguntavam quem ele era, ou falavam que ele tinha uma forte radiância, ou que tinham a sensação de bem-estar em sua presença. Os judeus o tomavam por um rabino, os russos por um starets, os ortodoxos por um patricarca, os muçulmanos por um grande Cheikh e alguns norte-americanos por um chefe indígena!

Durante uma estadia no Marrocos, fomos convidados para um almoço com um comerciante que morava no meio da medina de Fez. Fomos até lá vestidos com trajes tradicionais e os marroquinos começaram a seguir-nos pelas ruelas da cidade antiga, formando uma fila cada vez maior atrás de nós. O Cheikh apertou o passo para escapar deles, mas sem êxito; eles nos perseguiram até a porta de nosso anfitrião e ali ficaram, imperturbáveis, na esperança de ver-nos quando saíssemos. Um deles perguntou sobre a identidade do Cheikh e um dos empregados da casa respondeu que ele era o chefe de todos os muçulmanos da Europa – o que, é claro, não era verdade e não ajudou na situação. Tivemos que esperar até a hora da prece da tarde, quando todos iriam para a mesquita, para podermos voltar ao nosso hotel sem contratempos.

O Cheikh tinha 14 anos quando o Cardeal Mercier, Arcebispo de Estrasburgo, foi até Mulhouse (para onde a senhora Schuon havia se mudado, com seus dois filhos, após a morte do marido) celebrar uma missa. A multidão se espremia ao longo do percurso por onde o prelado passaria, para receber sua benção; o pequeno Frithjof estava na segunda fila. Quando o arcebispo passou perto dele, olhou-o e, por sobre as cabeças das pessoas que estavam na primeira fila, estendeu sua mão para que o garoto pudesse beijar o anel episcopal.

Quando prestou o serviço militar – obrigatório na França – por um ano e meio, os oficiais acabaram por tratá-lo com muito respeito e deram-lhe um serviço fácil na enfermaria e no escritório. Por algum tempo ele dividiu o quarto com um cigano que ensinou-lhe canções nostálgicas em romani, a língua dos ciganos.

Sua afabilidade respeitosa também atraía a simpatia das pessoas simples. Após nosso noivado, o Cheikh apresentou-me em todas as lojas que ele havia frequentado nos últimos sete ou oito anos. O verdureiro, o açougueiro, a mulher do padeiro, a dona da lavanderia, todos expressaram suas congratulações da maneira mais cordial. Foi tocante. Talvez eles tivessem uma espécie de piedade gentil por aquele homem que parecia, por assim dizer, envolvido em sua solidão.

A zeladora do prédio aonde o Cheikh vivia, que limpava o seu apartamento uma vez por mês, tinha verdadeira veneração por ele. Um dia ela implorou para que ele a abençoasse, e também a sua família. O Cheikh só podia concordar e, numa manhã de domingo, a senhora G., seu marido e sua filha vieram e se ajoelharam diante dele. Ele rezou o Pai Nosso com eles e pôs sua mão direita em suas cabeças enquanto recitava uma prece de bênçãos, e a pequena família partiu transbordando de gratidão.

Mas a presença do sagrado também pode gerar ódio. Por isso o Cheikh teve que sofrer a dolorosa experiência de pessoas que se rebelaram contra ele e levantaram acusações falsas sobre sua pessoa. Na rua, podia ocorrer que jovens arruaceiros o insultassem com linguagem injuriosa; normalmente, o Cheikh não dava nenhuma atenção a isto mas uma vez, em Piccadilly Circus [Londres], ele parou, fixou seu olhar num grupo de jovens que zombavam dele, e gritou em francês: “Qu’est-ce que vous vous permettez?” (“Como ousam?”). Os jovens ficaram parados ali mesmo, sem poder se mexer, e quando eu olhei para trás, depois de ter cruzado a praça, ainda os vi imobilizados no mesmo lugar. Exatamente a mesma coisa aconteceu em Cambridge, Massachusetts, quando um homem, à passagem do Cheikh, bateu continência com um sorriso sarcástico. O Cheikh parou, fixou o olhar no homem sem dizer uma palavra, e seguiu o seu caminho. O homem permaneceu ali, congelado, incapaz de tirar a mão da borda de seu boné até nós virarmos a esquina, como um amigo que caminhava atrás de nós observou. Graças a Deus tais incidentes eram extremamente raros.

O mais tocante era quando crianças pequenas vinham espontaneamente cumprimentá-lo, às vezes escapando de seus pais ou babás para fazer isto. Os Peles-Vermelhas, que desconhecem a barba, perguntavam se ele era Papai Noel, e ele sabia muito bem como colocar-se no nível das crianças.

Algum tempo depois de nos casarmos, minhas irmãs mais novas, gêmeas, que tinham então oito anos, vieram visitar-nos em nosso novo apartamento. O Cheikh trouxe de seu armário uma caixa cheia de brinquedos e tirou um grande zumbidor, que fez girar puxando várias vezes o elástico que o atravessava; o objeto então emitiu um som misterioso que ele descreveu como “a música das esferas”; depois ele tirou da caixa um chocalho que soava como um gamelão balinês e disse que era a “música dos anjos”. Minhas duas irmãs escutavam deliciadas a este concerto celestial, e entraram no jogo, uma girando o zumbidor e a outra balançando o chocalho. O Cheikh observou-as por um momento e então se retirou, não sem antes trazer-nos alguns livros com ilustrações de Bali e da Índia. Minha irmã Anne, futura carmelita, disse depois: “Gosto de seu marido, ele sabe como agradar garotas pequenas”. Isto era tão verdadeiro que uma vez ele não hesitou em carregar no trem de Lausanne à Basileia um balão azul para a filhinha de um amigo, porque ele sabia que ela gostava de balões desta cor. E quantas vezes jogamos bola com os filhos de nossos vizinhos, assim como fazíamos com Dr. Martin Lings e sua esposa quando eles nos visitavam no verão!

O Cheikh também sabia como entreter garotos pequenos; mostrava para eles sua coleção de objetos dos índios Pele-Vermelha: arco e flechas, um cachimbo da paz, um colar feito de dentes de urso, um machadinho, cartucheiras e ornamentos bordados com penas ou contas; ele contava aos garotos os feitos heróicos de um chefe índio e, além do mais, era perfeitamente hábil para ilustrar a história com pequenos desenhos divertidos.

Em geral, ele gostava de dar prazer, não apenas às crianças mas também aos adultos, e cedia facilmente aos pedidos desde que fossem razoáveis.

* * *

Quando criança, eu vi lindas fotos do Parque Nacional Suíço, no cantão de Grisons, e sempre desejei visitar aquele lugar. Então perguntei ao Cheikh se poderíamos passar algum tempo ali depois de nosso casamento. Ele concordou; chegamos bem no início da abertura da temporada e por isso fomos os únicos hóspedes do hotel durante uma semana, e tínhamos todo o enorme parque inteiramente para nós. Todo dia saíamos para longas caminhadas, apreciando os prados cobertos de flores e descansando ao lado de córregos de água, observando os veados correndo e se divertindo nos pastos da montanha e as marmotas brincando como crianças na frente de suas tocas. Para o Cheikh, que sempre morou em cidades, foi uma experiência maravilhosa. Eu sentia que ele absorvia com todo o seu ser o que estava sendo oferecido aos seus sentidos. Quase sempre caminhávamos em silêncio.

Nós descobrimos, ao lado de um córrego no meio de uma floresta de pinheiros, uma grande pedra achatada onde o Cheikh gostava de sentar-se e meditar. Envolto em seu manto, com seus olhos fechados, profundamente absorto, ele parecia um sábio em uma paisagem taoísta. Ele estava sentado com as pernas cruzadas, suas mãos sobre os joelhos, inabalável, infinitamente majestático, e pareceu-me que quanto mais eu olhava para ele (eu estava sentada do lado oposto do córrego) mais sua imagem crescia e finalmente fundia-se com a grandiosidade da natureza ao redor. Para mim não havia dúvida de que ele era um com Deus. Só raramente eu tinha visto o Cheikh assim, pois na presença de outras pessoas ele tentava ocultar seus estados espirituais, e ele sempre retirava-se para o seu quarto quando estava meditando – o que é óbvio – mas esta expressão mais majestática frequentemente aparecia em sua face durante o sono, e eu imaginava como tal homem após acordar poderia suportar viver em um mundo como o nosso.

Certo dia alcançamos um local bem acima do limite das árvores, com uma vista magnífica das montanhas cobertas de neve; o Cheikh sentou-se para descansar enquanto eu fui tentada a alcançar o topo do cume. Não havia mais nenhuma trilha e eu escalava por uma ladeira de seixos quando, de repente, encontrei-me em meio a um campo de edelvais como eu jamais tinha visto. Eu chamei: “Ya Cheikh, venha ver, está cheio de edelvais aqui em cima!” Quando o Cheikh viu aonde eu estava, advertiu-me: “Não, não, vejo que é perigoso aonde você está. Volte; ninguém deve arriscar a própria vida sem uma séria razão”. Eu voltei e admiti que ele estava certo. Nós ficamos assim por um longo tempo, contemplando a vista; o Cheikh falou sobre a respiração, dizendo que o ar é a manifestação do éter que penetra todas as formas e é ao mesmo tempo um veículo da Presença universal de Deus; quando respiramos, o ar introduz em nós éter junto com luz e assim nós inspiramos a Divina Onipresença. A respiração deveria ser acompanhada da Lembrança de Deus, as pessoas deveriam respirar com reverência, com o coração.

À noite, no hotel, o Cheikh escrevia ou me contava sobre o seu passado. Parece que desde criança ele já era objetivo e lógico como uma espada desembainhada; os adultos tomavam isto por uma excentricidade e diziam: “ele vai superar isso com o tempo”. Somente seu pai comentava: “Frithjof será alguém grande um dia”. As histórias dos anacoretas o impressionavam muito e um dia ele e seu irmão pegaram as cinzas da lareira e espalharam-nas por suas cabeças, faces e roupas, e então sentaram-se com as pernas cruzadas e os olhos fechados para “meditar”. Quando a mãe, horrorizada, descobriu-os, eles disseram: “Não nos interrompa, mãe, somos sanniasis!”. A pobre senhora Schuon teve outro choque quando encontrou seus filhos tentando serrar as pernas da mesa de jantar; eles tinham visto fotos de interiores de casas orientais e pensaram que seria muito mais agradável comer sentados em almofadas ao redor de uma mesa baixa. Felizmente, a madeira da mesa era muito dura e as crianças só foram capazes de arranhar o precioso móvel antes que algum dano real ocorresse. O Cheikh nunca ria, mas quando contava estas histórias reprimia o riso, e apenas um suave “he, he” escapava.

Quando criança, ele tinha o dom de consolar seus pequenos amigos que, já naquele tempo, confidenciavam-lhe suas aflições e pediam-lhe conselhos; e em suas aventuras ele era sempre o líder.

Em outras noites, cantávamos todas as canções que conhecíamos, o Cheikh fazendo a segunda voz. Ele tinha uma boa voz e um senso musical apurado. Ele lamentava não poder cantar durante as reuniões de oração porque os vizinhos poderiam nos ouvir e quando, depois de cinco anos, conseguimos finalmente uma casa para nós, foi como que uma liberação para ele poder enfim cantar, e ele improvisava as mais lindas canções espirituais.

A maravilhosa temporada na natureza virgem foi o início de uma lenta recuperação para o Cheikh que, desde a morte de seu pai, havia sofrido incrivelmente por causa do ambiente de feiúra, mesquinhez, falta de fé e – no atelier de desenhista têxtil onde estava empregado – pela vulgaridade e perversidade do meio onde ele foi obrigado a viver. Ele foi uma criança extremamente sensível à beleza, à grandeza, ao sagrado, como prestam testemunho os poemas que escreveu aos 13 anos de idade, dos quais desejo dar aqui duas traduções do alemão:

Sopro da noite

Vosso braço de veludo eleva-me a Vós?
Vosso manto desce silenciosamente sobre mim?
Com devoção eu contemplo vosso santo Todo!
Eu desabrocho na fragrância de Vossa alma –
Para meus sentidos Vós suavemente abristes uma porta.
Uma doce fé ondula gentilmente sobre mim.

(01/08/1920)

Prece no Gólgota

Seja saudado de minha parte, ó Gólgota,
Onde residem meus sonhos e minhas preces,
Para onde correm meus pensamentos sedentos;
Ó Cristo, que faz doce minha vida!

Meu coração está fatigado, minha alma é fraca,
Eu confiei demais na humanidade!
Sempre que meu olhar volta-se para Vós, ó Senhor,
Eu encontro um lugar de repouso e um abrigo.

Gólgota, moradia cheia de graças!
Se minha própria força parecesse ser suficiente
E se minha presunção se opusesse a Vós,
Vós seríeis o refúgio de minha pobre alma.

Eu termino aqui minha canção mortal –
Mas eternamente cantarei em beatitude;
Para Vós eu desejo ascender sobre as asas
E colocar minha confiança em Vós,
Ó Senhor, por toda a minha vida.

(após a morte de seu pai, 21/12/1920)

Com toda a sua alma, ele aspirava por um ambiente que manifestasse as qualidades e virtudes que eram parte integral de sua natureza, mas na maioria das vezes ele encontrava incompreensão, desprezo ou zombarias. Somente o padre com quem ele se confessava mostrava-lhe simpatia; mas para o jovem Schuon, que já tinha lido as escrituras sagradas da Índia e os sermões do Buda, uma fé católica estreita não podia saciar sua sede pelo Absoluto. Muito cedo ele sentiu que Deus o estava chamando para cumprir uma missão, mas ele obviamente não podia saber qual seria esta. Suas intuições e aspirações chocavam-se em todo lugar com portas fechadas; ao seu redor, tudo estava mergulhado em escuridão! O que possibilitou-lhe sobreviver foram sua fé inabalável e a leitura das Escrituras sagradas. Durante o serviço militar ele leu, entre outras coisas, a vida de Milarepa e a vida de Ramakrishna, e anotou seus pensamentos, os quais comunicava aos amigos por carta; isso foi o começo de seu primeiro livro, escrito em alemão: Leitgedanken zur Urbesinnung (Pensamentos diretivos para a meditação primordial). Como um quebra-gelo na noite, ele tentou abrir o caminho em direção à luz da qual ele sabia a verdade por intelecção e da qual queria que seus próximos fizessem parte.

Quando perdeu o emprego de desenhista têxtil em Paris, foi um sinal para ele: deveria deixar a Europa para sempre – assim pensava ele – e fugir para o Oriente, colocando-se inteiramente nas mãos de Deus, que lhe mostraria o caminho a ser seguido. E o destino dirigiu-o à Argélia e ao venerável Cheikh Al-‘Alawi. Durante sua estadia de três meses e meio junto a este grande santo, muitas feridas começaram a cicatrizar; mas a polícia francesa o estava perseguindo, assim como ao velho Cheikh Al-‘Alawi, por causa de sua presença na zawiah, e ele sentiu-se obrigado a voltar para a França. Alguns anos depois, quando ele partiu para a Índia com a esperança secreta de lá desaparecer para sempre, estourou a Segundo Guerra Mundial e ele foi obrigado a retornar para ser recrutado no exército. Era óbvio que o Todo Poderoso queria que os dons que Ele havia colocado neste jovem homem fossem aproveitados no Ocidente ao invés de se perderem nas areias do Saara ou nas águas do Ganges. “Eu desejo ser carregado em direção à Divindade nas asas tanto da beleza exterior quanto da interior, sem nenhuma auto-ilusão e de uma maneira profundamente séria e sagrada, e portanto não fora da Verdade e daquilo que ela impõe a nós”, ele escreveu para um amigo; e finalmente foi ele mesmo quem teve que criar para si, e para aqueles que entendiam e assimilavam seus escritos, o mundo de suas aspirações, o qual, precisamente, era um mundo de verdade, beleza e grandeza de alma.

* * *

Após nossa temporada nas montanhas de Grison, mudamos para um novo apartamento de três quartos no último andar de um prédio com vista para o lago Genebra. Minha família, que sabia apenas que Schuon era um escritor, havia se oposto abertamente ao meu casamento (“ninguém se casa com um homem que não tem nome, não tem dinheiro, escreveu um livro incompreensível e, ainda por cima, tem a face de um profeta!”); mas por fim eles mostraram-se generosos e nós pudemos comprar alguns tapetes bérberes, cobertores e o mínimo necessário de móveis rústicos em madeira clara com os quais sonhávamos.

O Cheikh levava uma vida altamente disciplinada, pontuada pelas horas das preces; sempre duro consigo mesmo, ele era, ao contrário, indulgente com seus discípulos, levando em conta as difíceis condições de trabalho do mundo moderno. Ele nunca mudou seus hábitos durante todos os anos em que vivemos juntos. Ele acordava ao nascer do sol e fazia suas preces. “Enquanto uma pessoa não faz suas preces ela não é um ser humano.” Depois de um desjejum simples, ele caminhava até o lago sozinho, como sempre havia feito antes do casamento. Ele tinha estrita necessidade destas horas de solidão ao ar livre. Às dez horas ele recebia as visitas e à tarde, após ter se retirado por uma hora, escrevia artigos ou cartas. Ele respondia toda as cartas com paciência e generosidade admiráveis, não hesitando em preencher mais de uma dúzia de páginas, se necessário, para iluminar todos os ângulos de um problema. Frequentemente ele escrevia até tarde da noite e levantava-se para andar ao redor de seu quarto, menos para ponderar sobre o que queria expressar do que para lembrar de Deus. Todo dia ele lia ao menos uma página do Corão (em árabe) e também amava ler os Salmos – os salmos 23, 63, 77, 103 e 124 eram seus favoritos, dependendo das circunstâncias.

Nós comíamos sentados no chão em frente a uma pequena mesa marroquina, ou na cozinha, em silêncio. “Deve-se respeitar a comida”, e de fato o Cheikh sempre comia com recolhimento. Ele não tolerava que as pessoas tivessem conversas intensas à mesa, e quando eu respondia, por cortesia, às visitas, ele falava: “Deixe-os comer”, o que bastava para impor silêncio a todos. Quando estava sentado, ele nunca recostava-se, e em todo caso nós não tínhamos cadeiras, apenas dois bancos, um para sua escrivaninha e um para a cozinha; à parte isto, tínhamos alguns pufes marroquinos. Para os visitantes que não estavam acostumados com a vida “à oriental”, adquirimos duas cadeiras dobráveis que podiam ser rapidamente montadas. Foi apenas durante os seus últimos anos de vida que o Cheikh consentiu sentar-se numa poltrona para receber os visitantes, mas ele evitava fazer isso o tanto quanto possível. Ele sempre caminhava de um modo ereto e firme, até em seus últimos meses de vida, mesmo estando enfraquecido por três ataques cardíacos. Ele só se lavava com água fria; tomar um banho quente era algo que lhe ocorria tão raramente quanto fumar um narguilé! Se é verdade que alguns de seus hábitos derivavam do fato dele sempre ter sido pobre, eles correspondiam, por outro lado, à sua natureza ascética. Tudo o que ele fazia, fazia bem, sem pressa, com uma fisionomia serena. Um de seus hábitos era lavar seu copo imediatamente após cada refeição; ele também arrumava sua cama assim que terminava suas preces matinais.

Quando ele queria se informar sobre um assunto do qual gostaria de tratar, ia até um de seus amigos livreiros, pegava um livro emprestado e devolvia-o em um ou dois dias, ou então lia o que precisava na livraria mesmo. Ele tinha o dom de abrir imediatamente nas páginas que precisava para suas informações; era como se um anjo abrisse o livro para ele. Desta maneira, ele não gastava seu tempo procurando e lendo o que não lhe era útil. Mas ele também encontrava os erros e, com a espada de seu discernimento sempre alerta, combatia-os sem misericórdia. “Não há direito superior ao da verdade”, parecia ser seu lema máximo, e sua franqueza não atraía para ele, é claro, apenas amigos. Às vezes ele comprava um jornal para saber o que estava acontecendo no mundo; mas os erros cometidos pelos políticos irritavam-no tanto que ele preferia se afastar deste território. Em todo caso ele era informado, de uma forma ou de outra, sobre os eventos mais importantes.

Na década de 1950 o Cheikh começou a pintar novamente. Estava em sua natureza sempre querer dar. Ele dava através de seus livros, suas cartas, seus textos de orientação para os discípulos, seus poemas; ele não parou nunca de dar e de abrir portas interiores e celestes para nós. Através de suas pinturas, ele desejava expressar virtudes ou comunicar estados do ser. Como modelos ele tomava, principalmente, os índios das planícies dos velhos tempos, entre os quais ápices de nobreza viril podem ser encontrados (Guénon, para quem o Cheikh havia mandado uma dúzia de fotografias destes índios, escreveu-lhe: “Estas são realmente faces notáveis”), e a Santa Virgem sob seu aspecto universal de Mãe dos Profetas ou Logos feminino, que representa o apogeu da santidade feminina. As pinturas do Cheikh podiam, desta forma, ter um efeito enobrecedor ou interiorizante para as pessoas receptivas a este tipo de manifestação.

O talento que o Cheikh tinha para o desenho permitiu que, desde os 16 anos, pudesse ganhar a vida para si e sua mãe como desenhista têxtil, enquanto ocasionalmente vendia uma de suas pinturas. Um comerciante de arte em Paris, tendo visto alguns dos trabalhos do jovem Schuon, disse-lhe: “Meu jovem, você tem milhões nas pontas de seus dedos”. Mas aquele jovem homem não estava sonhando com uma carreira artística e tinha, ao contrário, decidido naquele momento deixar a Europa para sempre, para retirar-se do mundo em uma caverna do deserto do Saara ou do Himalaia, enquanto esperaria, em total aniquilação de sua vontade individual, pelas orientações de Deus. “Não se pode saber a Vontade de Deus exceto pela aniquilação de seus próprios desejos; não cabe a nós criar uma elite intelectual, cabe a Deus fazer isto, se tal for a Sua Vontade”, ele escreveu para um amigo. “Eu preferiria morrer a fazer algo que não fosse a vontade do Céu”. Foi com este mesmo sentido que ele me disse uma vez que um Cheikh al-Barakah nasce das cinzas de seu próprio ego.

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De tempos em tempos, permitíamos a nós mesmos o luxo de assistir a algum belo espetáculo exótico: os balés de Bali, teatro Kabuki, dança hindu; ou um belo filme sobre a Idade Média ou a vida de um santo. E o Cheikh não obstava que seus discípulos fizessem o mesmo: de fato, em um mundo de feiúra e vulgaridade, a alma pode aprender muito com a visão concreta da beleza e a expressão de sentimentos nobres e elevados, e pode assim ser encorajada no esforço em direção à virtude. “Não pode-se entrar no santuário da Verdade senão de uma maneira sagrada, e esta condição impõe acima de tudo a beleza de caráter”. Ele queria de nós que cultivássemos a beleza de alma e a dignidade de comportamento, linguagem e vestuário – todas qualidades ameaçadas de desintegração em um mundo onde o descuido e o desleixo estão quase se tornando moda; e neste período – década de 1950 e início da de 1960 – a influência corrosiva da psicanálise ainda não tinha sido capaz de insinuar-se em todas as manifestações das artes dramáticas.

Às vezes ouvíamos música; possuíamos apenas alguns discos, mas eles eram bem escolhidos pelo poder de interiorização e elevação das melodias. Além dos discos de música hindu, japonesa ou balinesa, tínhamos algumas obras clássicas, as quais o Cheikh dizia serem verdadeiras inspirações e como que portas abrindo para o Paraíso; por exemplo, o Lullaby (Canção de Ninar) de Sibelius, a Serenata ao Luar, o segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven, o primeiro movimento do Concerto de Aranjuez de Rodrigo, as Goyescas de Granados, Nas estepes da Ásia Central de Borodin. E música cigana! Nunca cansávamos de ouvi-la. O pai do Cheikh era um violinista e tinha dado concertos na Rússia e na Escandinávia; especializou-se em compositores do Leste Europeu e podia ele mesmo tocar como um cigano. Curiosamente, quando íamos a um restaurante onde havia ciganos tocando, eles pareciam sentir uma afinidade com o Cheikh, pois o primas sempre vinha à nossa mesa e fazia seu violino vibrar próximo de nossos ouvidos.

Cigano, teu violino chorou longamente –
Era uma canção de amor sem nome
Que sumiu, sem ser ouvida, na margem da noite.

Porque tua alma evitou teu próprio coração
Não soubeste para onde querias ir
E permaneceste solitário enquanto o dia declinava.

Até a canção de teu violino revelar-te
Que devias voltar-te para o profundo,
Onde tudo é resolvido no Amor de Deus.

                                                               (verão, 1997)

* * *

O número de visitantes crescia ano após ano, e a vida em nosso pequeno apartamento tornou-se quase insustentável. Por isso foi um verdadeiro presente do Céu quando um membro de minha família, que havia entrado na Via e percebeu a nossa difícil situação, ofereceu-nos os meios para comprarmos um pedaço de terra e construirmos uma casa. Encontramos na vizinhança de Lausanne um velho pomar abandonado no meio dos vinhedos, com vista para o lago e para as montanhas. Não poderíamos ter sonhado com algo melhor; era verdadeiramente um pequeno paraíso que ofereceu ao Cheikh a paz e o espaço necessários para suas atividades.

Amigos nossos, o senhor e a senhora Whitall Perry, compraram o terreno ao lado do nosso, o que nos trouxe muitas vantagens – entre outras, ter acesso a um telefone bem próximo. A ideia de ter tal aparelho em sua casa ocorria ao Cheikh tão pouco quanto a de ter uma máquina de escrever, e iríamos continuar vivendo sem ele como no passado, quando eu tinha que ir à cidade para fazer os telefonemas necessários. O Cheikh era um homem de outra época, e ele parecia viver mais no mundo das ideias do que no dos fatos cotidianos. Ele era como a encarnação do verso do Cântico dos Cânticos: “Eu durmo, mas meu coração vela”, ou o que ele mesmo disse em um texto: “Deus é Ser, e o que Ele ama em nós é o aspecto de ser; nós devemos, quando pensamos em Deus, repousar no ser”. No entanto, ele sempre estava atento ao que acontecia ao seu redor. Quando viajávamos com amigos, às vezes ficávamos envolvidos em conversas das quais ele não participava. Mas bastava que alguém falasse alguma bobagem para ele precipitar-se como uma águia para corrigir o erro. O mesmo se dava quando lhe era feita uma pergunta: a resposta jorrava sem a menor hesitação. Ele costumava carregar consigo um pequeno bloco onde anotava ideias ou frases para seus artigos. Não muito tempo atrás, eu encontrei em um desses blocos a seguinte sentença, que havia me impressionado quando li o capítulo sobre o Corão no livro Compreender o Islã: “A aparente incoerência das Escrituras Sagradas tem sempre a mesma causa, a saber, a incomensurável desproporção entre o Espírito de um lado e os limitados recursos da linguagem humana do outro; é como se a pobre e coagulada linguagem do homem mortal fosse quebrada, sob a pressão formidável da Palavra Celeste, em mil fragmentos, ou como se Deus, para expressar mil verdades, tivesse apenas uma dúzia de palavras a seu dispor e tivesse então que usar elipses, resumos e sínteses simbólicas”. Se ele por acaso esquecia-se de trazer seu bloco, pedia que eu o lembrasse de tal ou qual sentença ou palavra; assim, um dia ele disse: “Lembre-me da palavra ‘bumerangue’ quando voltarmos para casa”. “Bumerangue?” “Sim, bumerangue”. Intrigada, à noite fui ver o que ele poderia ter escrito, e li: “À questão de por que o homem foi colocado neste mundo quando sua vocação fundamental é deixá-lo, responderíamos: é assim precisamente para que haja alguém que retorne a Deus; isto é, a Toda-Possibilidade requer que Deus não apenas projete a Si Mesmo, mas também realize a beatitude libertadora do retorno. Exatamente como o bumerangue, por sua própria forma, é destinado a retornar para aquele que o jogou, assim o homem é predestinado por sua forma a retornar ao seu Protótipo divino; queira ele ou não, o homem é ‘condenado’ à transcendência”.[3]

O Cheikh sempre e novamente surpreendia-me com sua presença de espírito ou seu senso prático. Se ocorresse de ele deixar cair um objeto, catava-o no meio do caminho, antes que atingisse o solo; quando uma vela deixava pingos de cera no tapete, ele colocava uma ou duas folhas de mata-borrão sobre os pingos, esquentava um pouco de água em uma panela de fundo liso e colocava-a sobre o papel mata-borrão, e em segundos a cera era absorvida. Ou ainda: tínhamos preparado em nosso pomar um terreno plano para podermos montar a teepee que havíamos trazido do Oeste americano; bem, pássaros vieram às dúzias para bicar os grãos que eu havia espalhado para a grama crescer no terreno recém-preparado, e eu reclamei sobre isto com o Cheikh. “Vá e peça ao nosso vizinho um pouco de feno e cubra a área com ele”, disse, como se tivesse sempre sido um agricultor, e o sistema provou ser eficaz.

O Cheikh amava as tempestades e observava-as de seu terraço. Quanto mais raios e trovões, mais feliz ele ficava. “A Ira de Deus me consola e me faz respirar”. Havia em seu caráter, além de sua grande bondade, um traço vulcânico que fazia lembrar Beethoven. Ele sofria pelo fato de nunca poder jogar alguém porta afora, como qualquer mestre espiritual do Oriente poderia fazer impunemente; no Ocidente, isto não era possível e era uma das razões que o deixaram doente. Tempestades eram para ele a manifestação da Justiça Divina, a qual ele sabia que um dia irromperia.

* * *

Os anos passaram, as árvores deram-nos flores e frutos, as campinas com suas diversas flores selvagens e os pássaros com seus variados cantos deleitaram-nos. Tudo poderia ter sido beleza e harmonia se o Maligno não estivesse constantemente à espreita para atormentar o Cheikh; deserções, traições, calúnias seguiram-se umas às outras e, para um homem como o Cheikh, que era fidelidade e retidão encarnadas e que tinha uma capacidade quase sobre-humana para o perdão, estas decepções, a priori inconcebíveis para ele, acabaram por minar sua resistência física; ele ficou gravemente enfermo de asma e pensou seriamente em não aceitar mais novos postulantes à Via e retirar-se para algum lugar nas montanhas, longe do mundo.

Mas o Céu interveio e enviou-lhe sua mais gentil e bela Mensageira, a Virgem Maria, por quem o Cheikh sempre teve uma grande veneração; Ela deu-lhe coragem e força renovadas. Depois de uma estadia de um mês no Marrocos, que foi plena de bênçãos, nossa vida continuou como antes e todo um rio de jovens aspirantes veio bater em nossa porta.

* * *

Mais quinze anos passaram-se, interrompidos por frutíferas viagens ao Oriente e ao Ocidente e repousantes estadias nas montanhas suíças, quando, um dia, o Cheikh recebeu um sinal absolutamente seguro do Céu para emigrar para a América. Este sinal era tão imperioso que quando eu disse para o Cheikh, após uma visita ao consulado americano, que não havia possibilidade de emigrarmos, ele teve uma crise de asma e disse que, neste caso, tentaria o Canadá ou o México. Felizmente, graças a ajuda de um amigo americano que era advogado, os obstáculos puderam ser removidos, e assim nós partimos para as florestas de Indiana, onde uma comunidade com cerca de 40 jovens estava esperando por nós; todos eles haviam estudado religião comparada sob a orientação de um dos discípulos do Cheikh, o dr. Victor Danner, professor da Indiana University, em Bloomington.

Eu estava ansiosa para contar este episódio porque houve muitas especulações erradas sobre nossa saída da Suíça. De fato, o Cheikh nunca teria empreendido tal mudança em sua vida – ele estava então com 73 anos – sem estar certo de que era a Vontade Divina. Já havia alguns anos tinham-nos sugerido que mudássemos para o Marrocos; mostraram-nos várias propriedades tentadoras em Tânger, mas ele disse: “Para dar um passo assim tão importante, eu preciso ter um sinal do Céu”. Graças à fundação de uma editora especializada na publicação dos textos do Cheikh, que nós ajudamos a traduzir para o inglês, a obra de Frithjof Schuon tornou-se cada vez mais conhecida por um número crescente de intelectuais, os quais frequentemente manifestavam sua apreciação em cartas cheias de gratidão. A semente da Verdade tinha sido semeada no deserto espiritual que é a América e isto é, parece-me, uma razão suficiente para o grande salto sobre o Oceano Atlântico que realizamos em 1980. Toda a sua vida, o Cheikh quis apenas uma coisa: expressar a Verdade, aproximar-se da Verdade e viver a Verdade.

A meta que ele propõe é muito elevada?

Em uma carta endereçada a seu amigo Titus Burckhardt, ele escreve: “A grandeza é a condição necessária para o retorno a Deus, pois Deus é grande e apenas o que é grande pode alcançar o grande. A grandeza é acima de tudo união da alma com Deus. Àquele para quem esta união é inacessível, o fervor pode ser acessível, e àquele para quem o fervor está fora do alcance, perseverança e fidelidade são certamente acessíveis, pois essa é uma grandeza acessível a qualquer pessoa espiritual.”

Nos últimos dois anos e meio de sua vida, o Cheikh escreveu mais de 3.000 poemas, tanto didáticos quanto líricos – um testamento, por assim dizer, no qual ele destila até a última gota sua sabedoria e sua alma em versos que vão diretamente ao coração de qualquer um que possa lê-los no original em alemão.

Após levantar para suas preces, ele faleceu no alvorecer do dia 5 de maio de 1998, sentado em sua poltrona, invocando o Nome de Deus.

Que a obra do Cheikh brilhe nos corações daqueles que têm ouvidos para ouvir.

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Extraído de: Dossier H – Frithjof Schuon (L’Age d’Homme, Paris e Lausanne, 2002). Tradução de Iara Biderman Azevedo a partir da versão inglesa.

[1] Logique et Transcendance, capítulo “Des preuves de Dieu”, Éditions Traditionnelles, Paris, 1982.

[2] Forme et Substance dans les Religions, capítulo “La croix ‘temps-espace’ dans l’onomatologie koranique”, Dervy Livres, Paris, 1975. [Em português: Forma e Substância nas Religiões, Sapientia, São José dos Campos, 2011.]

[3] Le Jeu des Masques, capítulo “L’homme dans la projection cosmogonique”, Lausanne, Suíça, 1992.