A BASE DA RELIGIÃO E DA METAFÍSICA

Nos primeiros anos do século XX, René Guénon e Ananda Coomaraswamy deram início a uma escola de pensamento centrada na enunciação e explicação da philosophia perennis. Esta filosofia é a verdade metafísica intemporal subjacente às diversas religiões, cujas fontes escritas são as escrituras reveladas, bem como as obras dos grandes mestres espirituais. Pelo fato de estas verdades serem permanentes e universais, tal ponto de vista pode ser chamado de “perenialista”. Esta perspectiva tem atraído cada vez mais atenção nos últimos anos, tanto em círculos acadêmicos como entre leitores sérios, e Frithjof Schuon é reconhecido como um de seus principais porta-vozes. Nascido em 1907, na cidade de Basileia, na Suíça, em uma família de origem alemã, Schuon escreveu mais de vinte livros sobre filosofia, estudos de religião comparada e espiritualidade. Sua obra foi traduzida do francês original para o inglês, o alemão, o italiano, o espanhol, o português e várias outras línguas. Por mais de 50 anos, seus escritos, respeitados tanto por acadêmicos como por autoridades espirituais, têm tido publicação garantida e sido tema habitual de resenhas em uma ampla variedade de revistas sobre religião comparada.

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Seu primeiro livro intitula-se A Unidade Transcendente das Religiões. Como se deve entender essa unidade?

Frithjof Schuon – Nosso ponto de partida é o reconhecimento do fato de que há diversas religiões, que se excluem umas às outras. Isto poderia significar que uma religião está certa e que todas as outras são falsas; poderia significar também que todas são falsas. Na realidade, significa que todas estão certas, não em seu exclusivismo dogmático, mas em sua significação interior unânime, que coincide com a metafísica pura ou, em outros termos, com a philosophia perennis.

Como podemos saber que este significado metafísico é a verdade?

Schuon – A perspectiva metafísica baseia-se na intuição intelectual, a qual, por sua própria natureza, é infalível porque é uma visão do intelecto puro, enquanto que a filosofia profana opera apenas com a razão, portanto com pressupostos e conclusões de natureza lógica.

Sendo assim, qual é a base da religião?

Schuon – A perspectiva religiosa, dogmática ou teológica está baseada na revelação. Seu propósito principal não é explicar a natureza das coisas ou os princípios universais, mas salvar o homem do pecado e da danação, e também estabelecer um equilíbrio social realista.

Se temos a religião, que nos salva, por que precisamos também da metafísica?

Schuon – Porque a metafísica satisfaz as necessidades de pessoas intelectualmente dotadas. A verdade metafísica não diz respeito apenas ao nosso pensamento, mas penetra também todo o nosso ser; portanto, ela está muito acima da filosofia no sentido comum do termo.

No nível espiritual, que é que todo ser humano precisa?

Schuon – Três coisas: a verdade, a prática espiritual, a moral. A verdade pura e sem véus coincide com a metafísica; os dogmas religiosos são símbolos de verdades metafísicas; o entendimento profundo do simbolismo religioso é esoterismo. A metafísica pura está oculta em toda religião.

E o que dizer da prática espiritual?

Schuon – A prática espiritual é essencialmente a oração. Há três formas de oração: em primeiro lugar, a oração canônica, por exemplo, o Pai Nosso; em segundo lugar, a oração pessoal, cujo melhor modelo é dado pelos Salmos; em terceiro, a oração contemplativa do coração; esta já é espiritualidade mística, que requer certas condições. A narrativa do “peregrino russo” dá uma imagem dela; como também textos hindus acerca do japa-yoga, a invocação metódica.

E o que dizer da moral?

Schuon – Esta é, depois da verdade e da prática espiritual, a terceira dimensão da vida espiritual. Por um lado, moral significa um comportamento sensato, saudável e generoso; por outro lado, significa beleza da alma, portanto nobreza intrínseca. Sem esta qualidade, a doutrina e a prática espiritual seriam estéreis.

O senhor mencionou há pouco a intuição intelectual. Todos possuem esta faculdade?

Schuon – Sim e não. Em princípio, todo homem é capaz de intelecção, pela simples razão de que o homem é o homem; mas, de fato, a intuição intelectual — o “olho do coração” — está oculta sob uma camada de gelo, por assim dizer, por causa da degeneração da espécie humana. Então podemos dizer que a intelecção pura é um dom e não uma faculdade da humanidade em geral.

É possível desenvolver esta intuição mais elevada?

Schuon – Não é necessário desenvolvê-la. Podemos ser salvos somente pela fé. Mas é evidente que uma pessoa muito piedosa ou contemplativa possui mais intuição que uma pessoa mundana.

O Papel da Arte

Gostaria de perguntar qual é o papel da arte na existência espiritual humana.

Schuon – Poderíamos dizer que, depois da moral, a arte — no sentido mais amplo do termo — é uma dimensão natural e necessária da condição humana. Platão disse: “A beleza é o esplendor do verdadeiro.” Digamos então que a arte, incluindo o artesanato, é uma projeção da verdade e da beleza no mundo das formas; ela é ipso facto uma projeção de arquétipos. E é essencialmente uma exteriorização com vistas a uma interiorização. Arte não significa dispersão, significa concentração, um caminho de volta a Deus. Toda civilização tradicional criou um arcabouço de beleza; um meio circundante natural, ecologicamente necessário para a vida espiritual.

Quais são os critérios para saber o valor de uma obra de arte, seu nível de inspiração?

Schuon – Os arquétipos da arte sacra são interpretações celestes; todas as outras obras de arte tiram sua inspiração da personalidade espiritual do artista. Os critérios para saber o valor da arte são o conteúdo da obra, seu modo de expressão e sua técnica, seu estilo.

Os critérios são diferentes para os vários tipos de arte — pintura, escultura, dança, música, poesia e arquitetura?

Schuon – Não, os critérios não são diferentes para os vários tipos de arte.

Na beleza, há o que se poderia chamar de um elemento ambíguo, já que ela pode contribuir para uma auto-insuflação mundana ou, ao contrário, para uma lembrança do divino. O que há em algumas artes — a música, a poesia e a dança, por exemplo — que torna o elemento ambíguo mais pronunciado nelas?

Schuon – A pintura e a escultura são em certo sentido mais cerebrais e objetivas do que a poesia, a música e a dança, que são mais psíquicas e subjetivas; assim, o elemento ambíguo é mais pronunciado nestas três artes.

Pode-se dizer que a noção hindu de darshan tem uma aplicação na experiência da arte e da beleza?

Schuon – Certamente, a noção hindu de darshan aplica-se a qualquer experiência estética ou artística; mas nestes casos ela envolve também percepções mentais e auditivas, não apenas a visão.

Pode-se dizer que há uma ligação natural entre a beleza, no sentido mais amplo, e o esoterismo?

Schuon – Sim, há uma ligação entre a beleza e o esoterismo, porque “a Beleza é o esplendor do Verdadeiro.” A arte tradicional é esotérica, não exotérica. O exoterismo está interessado na moral, não na beleza; ocorre até mesmo de o exoterismo poder se opor à beleza em razão de um preconceito moralista.

Seria legítimo dizer que o esoterismo tem certos direitos em relação à arte e à beleza, direitos que transcendem os limites e proibições estabelecidos pelos vários exoterismos?

Schuon – Em princípio, o esoterismo tem certos direitos que transcendem as proibições do exoterismo, mas de fato o esoterismo raramente pode fazer uso desses direitos. Não obstante, isto já ocorreu, por exemplo no caso de danças de dervixes ou de pinturas tibetanas aparentemente indecentes.

Além das “belas artes”, há — no Japão, por exemplo — a arte do arranjo floral, a cerimônia do chá e mesmo as artes marciais, que são — ou eram, originalmente — reconhecidas como manifestações de natureza espiritual. Como se explica que uma atividade tão “cotidiana” como preparar chá possa tornar-se veículo de uma graça espiritual?

Schuon – As artes do zen-budismo, como a cerimônia do chá, cristalizam algumas maneiras de agir do Buddha ou, digamos, do homem primordial; ora, o Buddha nunca empunhou uma espada, mas se o tivesse feito seria como um mestre zen. Agir como o Buddha, mesmo num nível como o do preparo do chá, significa assimilar algo da natureza do Buddha; é uma porta aberta para a iluminação.

A arte moderna não é tradicional. Isto significa que um objeto de arte moderna é necessariamente ruim?

Schuon – Não, porque uma obra de arte moderna — moderna no sentido mais amplo — pode manifestar diversas qualidades, em relação ao conteúdo bem como em relação ao tratamento e ao artista. Algumas produções tradicionais são ruins e algumas produções não-tradicionais são boas.

O que a arte significa para a pessoa do artista?

Schuon – Ao criar uma obra de arte nobre, o artista produz um efeito em sua própria alma; em certo sentido, ele cria seu próprio arquétipo. Portanto, a prática de uma arte é uma via de auto-realização, em princípio ou também de fato. No caso de temas não importantes ou mesmo negativos, o artista pode permanecer intencionalmente inafetado, mas no caso de temas nobres e profundos o artista trabalha com seu próprio coração.

Primordialidade

Seu livro The Feathered Sun (“O Sol de Penas”) revela seu interesse pelos índios norte-americanos. Qual o estímulo por trás deste interesse ou afinidade?

Schuon – Os índios norte-americanos — e especialmente os das pradarias — têm muito em comum com o samurai japonês, que muito frequentemente praticava a espiritualidade zen. Moralmente e esteticamente falando, os índios das pradarias constituíam um dos povos mais fascinantes do mundo. O grande erro do século XIX foi distinguir apenas entre “civilizados” e “selvagens”. Há distinções que são muito mais reais e importantes, pois é óbvio que a “civilização”, no sentido comum do termo, não é o valor mais elevado da humanidade, e também que o termo “selvagem” não é adequado aos índios. O que determina o valor das pessoas não é nem sua cultura mundana nem sua inteligência prática ou inventiva, mas sua atitude em face do Absoluto. Aquele que tem o senso do Absoluto nunca esquece a relação entre os homens e a natureza virgem, pois a natureza é nossa origem, nossa pátria natural e a mais transparente mensagem de Deus. Para o historiador árabe Ibn Khaldun, a condição mesma de uma civilização realista é o equilíbrio entre os beduínos e os habitantes das cidades, ou seja, entre nômades e sedentários; entre os filhos saudáveis da natureza e os representantes de valores culturais mais desenvolvidos.

Seus livros de arte, O Sol de Penas e especialmente Imagens de Beleza Primordial e Mística, abordam o mistério da nudez sagrada. O senhor poderia explicar o significado desta perspectiva?

Schuon – A nudez sagrada — que tem um papel importante não apenas entre os hindus, mas também entre os índios americanos — baseia-se na correspondência analógica entre o “mais externo” e o “mais interno”: o corpo é então visto como o “coração exteriorizado”, e o coração, por seu lado, “absorve”, por assim dizer, a projeção corporal; “os extremos se tocam”. Diz-se na India que a nudez favorece a irradiação de influências espirituais, e também que a nudez feminina em particular manifesta Lakshmi e, consequentemente, tem um efeito benéfico sobre o meio circundante. De uma maneira bem geral, a nudez expressa e virtualmente actualiza uma volta à essência, à origem, ao arquétipo, portanto ao estado celestial. “E é por isso que, nua, eu danço”, como disse a grande santa da Cachemira, Lalla Yogishwari, depois de ter encontrado o Si divino em seu coração. Por certo, na nudez há também uma ambiguidade de facto por causa da natureza passional da humanidade; mas não há apenas a natureza passional, há também o dom da contemplatividade, que pode neutralizá-la, como, precisamente, no caso da “nudez sagrada”. Similarmente, não há apenas a sedução das aparências, há também a transparência metafísica dos fenômenos, que permite perceber a essência arquetípica através da experiência sensória. São Nonnos, quando contemplou Santa Pelágia entrando nua na pia batismal, louvou a Deus por ter feito da beleza humana não somente algo que pode levar a uma queda, mas também algo que pode dar origem a uma ascensão em direção a Deus.

Mensagem

Qual seria sua mensagem para as pessoas em geral?

Schuon – A oração. Ser um ser humano significa estar ligado a Deus. A vida não tem sentido sem isto. A oração e também a beleza, é claro; pois vivemos entre formas e não num vazio. Beleza da alma em primeiro lugar, e depois beleza de símbolos ao nosso redor.

O senhor falou de metafísica. Posso perguntar-lhe qual é o principal conteúdo desta sabedoria perene?

Schuon – Metafísica significa essencialmente discernimento entre o Real e o aparente ou o ilusório; em termos vedantinos, entre Âtmâ e Mâyâ, o divino e o cósmico. A metafísica aborda também as raízes de Mâyâ em Âtmâ — trata-se da personificação divina, do Deus criador e revelador — e depois a projeção de Âtmâ em Mâyâ — isto é, tudo o que é positivo ou bom no mundo. E isto é essencial: o conhecimento metafísico exige a assimilação intelectual, psíquica e moral; o discernimento exige a concentração, a contemplação e a união. Portanto, a teoria metafísica não é uma filosofia no sentido moderno da palavra; ela é essencialmente sagrada. O senso do sagrado é uma qualificação indispensável para a realização metafísica, como o é para todo caminho espiritual. Para o índio americano, como também para o hindu, tudo na natureza é sagrado; isto os homens modernos têm de aprender, pois é uma questão de ecologia no sentido mais amplo da palavra. O que é necessário em primeiro lugar é a oração, e então a volta à natureza. Poder-se-ia objetar que é muito tarde para isso; ainda assim, cada pessoa é responsável pelo que ela faz — não pelo que os outros fazem —, pois cada um está diante de Deus e pode fazer o que é necessário para sua alma imortal. O primeiro passo de retorno à natureza é a dignidade, dignidade de formas e de comportamento; isso cria o clima no qual as orações sentem-se à vontade, pois a dignidade participa da Verdade imutável.

(Entrevista concedida a Deborah Casey)