Mosaico na Zâwiya Moulay Idris, no Marrocos. Foto de Dmitry B.

Muitos teólogos do Islã, e não dos menores, estimam que Deus quer o mal, porque, dizem eles, se Ele não o quisesse, o mal não aconteceria; pois, se Deus não quisesse o mal e o mal se produzisse apesar disso, Deus seria fraco ou impotente; ora, Deus é onipotente.

O que esses pensadores ignoram manifestamente é a distinção, por um lado, entre o “mal como tal” e “tal ou qual mal” e, por outro lado, entre a subjetividade da Essência divina e a da Pessoa divina: pois a Pessoa divina é onipotente em relação ao mundo, mas não em relação a sua própria Essência; ela não pode impedir o que esta exige, a saber, a irradiação cosmogônica e as consequências que esta acarreta, ou seja, o afastamento, a diferenciação, a contrastação e, no fim das contas, o fenômeno do mal; o que equivale a dizer — repetimo-lo — que Deus é potente sobre tal ou qual mal, mas não sobre o mal como tal.

Se nos objetam, com Asharî, que neste caso Deus seria “fraco” ou “impotente”, respondemos que isto não é de forma nenhuma uma objeção, e por duas razões: em primeiro, porque uma limitação metafísica — com as impossibilidades que ela engendra — não é nem “fraqueza”, nem “impotência” no sentido humano desses termos [1], e, em segundo, porque, precisamente, há, no caso em questão, impossibilidade metafísica da parte do Deus-Pessoa; dado — nunca é demais sublinhá-lo — que a Onipotência da Pessoa divina incide sobre a Manifestação universal e de forma nenhuma sobre as raízes in divinis dessa Manifestação, nem, por consequência, sobre as consequências principiais dessas raízes, o mal, por exemplo.

Segundo um erro particularmente malsonante [2], e no fundo blasfematório, Deus não “quer” que nós pequemos, pois ele proíbe o pecado, mas, ao mesmo tempo, Ele “quer” que determinados homens pequem, pois, se Ele não o quisesse, eles não pecariam [3]; erro que incide sobre a subjetividade de Deus bem como sobre sua vontade. De resto, o mal surge da Onipossibilidade como “possibilidade do impossível” ou “possibilidade do nada”: a privação de ser está revestida, muito paradoxalmente, de um certo ser, e isto em função da ilimitação do Possível divino; mas “Deus” não poderia “querer” o mal enquanto tal.

[1] Pode-se, em certos casos, censurar ao fraco o não ser forte, mas não se poderia, sem absurdidade, censurar ao relativo o não ser absoluto; um modo ontológico não é uma falha moral.

[2] No original, malsonnante. Em francês, esta palavra é um termo teológico que tem o seguinte sentido, de acordo com o dicionário Littré: “Que soa mal, que não está de acordo com a doutrina ortodoxa, que pode ser tomado num sentido herético.” Optamos por manter o termo em português, embora só mantenha a primeira acepção, “que soa mal”. (N. do T.)

[3] A expressão cristã de que “Deus permite o mal”, e a de que Ele o faz “em vista de um maior bem” — ainda que seus caminhos possam não nos ser compreensíveis —, tais expressões são moralmente satisfatórias sem, contudo, serem intelectualmente suficientes. A notar que, no Islã, explicita-se por vezes que Deus “induz ao erro” não de uma maneira ativa, mas “abandonando” o homem ou “desviando-se” dele.


Extrato do ensaio “Especulação confessional: intenção e impasses”, disponivel neste website, o qual é parte do livro de Frithjof Schuon intitulado Nos Caminhos da Religião Perene, aqui também disponível integralmente.